Por Cid Nader
Existem filmes de "criança" que exigiriam avaliações muito mais complexas do que pensar simploriamente neles como, "filmes de criança". Alê Abreu vem traçando um caminho muito particular nessa sua opção de animador cinematográfico. Tem uma capacidade incrível - quase única pelo seu modo muito particular de enxergar as possibilidades que fazer animação pode alcançar - para o domínio de técnicas. Mas vai muito além da excelência no domínio delas, para intrometer em seus trabalhos - bastante detalhados e bem construídos - "alma" e muito o que dizer. Nem é tão profícuo nessa sua profissão de "desenhista animado" - são quatro trabalhos num período de cerca de quinze anos (lembro que tinha um em fase de confecção, mas não sei a quantas anda), o que denuncia um autor meticuloso e cuidadoso, ainda mais num país que nem oferece tantas facilidades para as produções executadas à mão -; ele aparece muito mais contundente no quesito "números absolutos" quando se confere seu trabalho em livros.
"Garoto Cósmico" é um típico exemplo de Alê. Assim: demorado em sua confecção total (algo em torno de sete anos); cuidadoso ao extremo na edição; direto e sem firulas nos desenhos imaginados para caracterizar os seres que transitam pelo filme; e, principalmente, precioso na essência da história a ser contada - sem esquecer também da excelência no trabalho de som e na escolha e criação das músicas (talvez esse fator, "música no filme", possa ser embaralhado e imiscuído à essência da idéia imaginada para a história, porque é um trabalho de garimpo sonoro muito sensível e voltado ao lúdico e a um modo de c(a)ontar algo genuinamente infantil). E quando digo que a história do filme é genuinamente infantil, venho com isso querer demonstrar o quão pode ser bom um trabalho que se imagina voltado ao mundo dos petits; o quanto pode ser obra voltada para seres pensantes e com a mente muito mais aberta às possibilidades que lhe serão narradas - algo muito ao contrário do que vem se institucionalizando como o modo de observação desse mundo atual, que trata as crianças como "elementozinhos" propensos ao bom gasto da graninha suada dos pais, ou como serzinhos que não conseguem imaginar nada além do que venha mastigado idiotamente por um tanto de "gente" responsável pelo diálogo com elas, em diversas de nossas mídias modernas (principalmente cinema e TV); e nem vou me dar o trabalho de citar nomes porque é de conhecimento geral. Se fosse para colocar numa paralela sua obra e seu modo inteligente de diálogo com o mundo infantil com a mídia de mais alcance, diria que a obra de Alê caminha na mesma toada dos programas da TV Cultura.
Aliás, "Garoto Cósmico" tem um certo punch de programa da emissora estatal de São Paulo. O modo como as músicas são entoadas e seu papel complementar dentro da história exposta via imagens são elementos mais vivos dentro do trabalho do que simples "emolduradores" ou embelezadores – apesar de serem minuciosas e belas como raramente se vê por aí. Os desenhos que do filme variam conforme as necessidades: no início são de formato preciso, poucos traços, "higienizados" – como que para fazer justiça à primeira da história que nos remete a um mundo no futuro que caracteriza nossos medos mais interiores quanto à não individualidade, ao pensamento em rede, à não possibilidade da vida particular (e aí já se manifesta uma idéia do autor, justíssima em suas preocupações, e precisa para desmistificar a "criança burra atual que não entenderia o bom recado a ser passado"). Com o passar do tempo e o avanço do lúdico sobre a mecanização, os traços passam a ganhar maleabilidade e evidenciam um mundo muito mais colorido, inclusive (bom lembrar que o pano de fundo na transformação que os personagens principais sofrerão é um circo, e cores têm tudo a ver); a conversa com Giramundo enquanto as nuvens vão tomando formatos diversos também são evidentes exemplos técnicos da nova diretriz estética da história (afora o fato de remeter às primeiras manifestações de imaginação mais livres e particulares em nossa infância); esteticamente, Alê também ousa (bem pouquinho, é verdade) com a intromissão de elementos reais filmados – surge um novo planeta que nada mais é do que uma mexerica, há uma mão toda pintada que passa rapidamente durante a execução de uma das músicas... -; acontecem até situações de puro psicodelismo.
As figuras que habitam e começam a servir de novas referências são mais para maluquetes do que "normais", acabando por fazer com que as crianças que vemos desde o início, na tela, passem a parecer cada vez mais criancinhas. Essa é a essência do trabalho. Essa é a meta de Ale Abreu. E resulta um "Garoto Cósmico" que é inteligente, que é infantil, que é para adultos também. Como se ele quisesse provar que dominar as técnicas narrativas e os elementos de cada estilo jamais deveria servir de desculpa para obras incompletas e com pouco a dizer.
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